terça-feira, 18 de janeiro de 2011

O universo dos games

Boa tarde pessoal. Na terça-feira tive o privilégio de ler o artigo do professor José Eisenberg, no Caderno Prosa & Verso, do jornal “O Globo”, do Rio de Janeiro, que foi publicado no último sábado. Vale a pena dar uma lida refletir sobre o assunto.

Antes de discutir se videogames são arte é preciso entender sua estética peculiar

por José Eisenberg

Há uma aversão disseminada nas sociedades contemporâneas à ideia de atribuir valor estético a manifestações da cultura de massa, produzidas em escala industrial para quem toma refrigerante e come batata frita. Onde estaria, por exemplo, o belo e o bom gosto de um videogame? Qual a beleza em fazer o Mario ultrapassar o Donkey Kong numa simulação de corrida de kart no televisor diante de nós? Shigeru Miyamoto, principal desenvolvedor de jogos da Nintendo e criador do personagem Mario, o Mickey Mouse dos videogames, declarou em março de 2010 que, para ele, “videogame não é arte”. Miyamoto ironizava a beleza de uma arte que ajudara a inventar. Como Magritte, Miyamoto escrevia ao seu modo no enquadramento da câmera de televisão: “Isto não é um cachimbo”.

Para os vovôs do videogame, o cachimbo era o telejogo da Philco. Nos primeiros shopping centers e seus centros de diversão eletrônica, Space Invaders para os meninos e Pacman para as meninas. Tudo invenção de japonês: Atari, Sega, Nintendo e Sony. O videogame é um jogo com raízes na cultura japonesa. Sua imaginação é narrativa: há heróis e vilões, todos com gosto pelas artes marciais; há um objetivo a ser perseguido e seus príncipes galgam cavalos alados em direção a algum lugar. Seus aplicativos são de repetição, plenos de momentos de game over/restart e são rápidos o suficiente para que uma partida termine antes da próxima estação: tudo é nipônico no universo da maior parte dos videogames, e se há neles arte, não se pode ignorar estas raízes.

Flâneur viciado em um museu

No início, a limitação técnica dos computadores tinha como contrapartida a ousadia criativa dos artistas-designers dos jogos eletrônicos. Hoje, os recursos quase ilimitados da técnica empurraram a arte de jogar games para o mundo da simulação onde, de tão parecida com a vida, uma corrida de F1 ou um vôo simulado de caça conferem uma plasticidade hiperrealista à experiência de jogar. Na produção destes videogames, trabalham centenas de artistas, comparáveis ao exército que produz um filme. Os créditos no final podem ser igualmente longos e chatos. Na cinemática que resulta, videogames criam experiências de som e imagem-movimento, em que a estética do cinema, em particular da ficção científica e do desenho animado infantil oferecem as maiores inspirações. Deste ponto de vista, portanto, não há como negar que videogame é uma forma de arte.

A cinemática do videogame, entretanto, está vinculada a uma concepção de jogo que o torna distinto do cinema. Assistimos filmes e desenhos animados; videogames são jogados. Este aspecto lúdico do “jogo de vídeo” retira o cinéfilo de sua condição passiva de audiência e o coloca diante de um desafio interativo que é na maior parte das vezes competitivo, exigindo da estética do videogame, além de recursos técnicos de interatividade que consoles e computadores oferecem, recursos de “jogabilidade”. Como argumenta Daniel Real, desenvolvedor de games, o desafio artístico do mutirão de artistas que trabalha na criação de um videogame é torná-lo um jogo bonito mas, acima de tudo, é preciso torná-lo um jogo bom de jogar; bom de jogar e por muito tempo. “Jogabilidade”, portanto, é sinônimo de aprendizado lento, por mais rápido que seja o ritmo da ação do videogame; é sinônimo de inventar razões para jogar que vão além de simplesmente vencer ou conquistar os objetivos determinados. Curioso como um videogame não pode ser ensinado (no máximo há dicas). Ele precisa ser praticado. E muitas vezes.

Jogo “bom de jogar”, lembra Daniel Real, é aquele que, a cada momento em que o jogador desiste de uma partida e reinicia o jogo — game over/restart — algo diferente, inesperado e, acima de tudo, “bacana”, se revela. O jogador de videogame é como um flâneur viciado em um determinado museu, que lá retorna todos os dias e fita, por algum tempo, os mesmos objetos de arte, sempre em busca de algo novo, algo que antes havia passado desapercebido.

É desta possibilidade de reiteração da experiência que o jogador de videogames extrai um juízo estético. O museu, para trazer de volta este aficionado, oferece arquitetura, decoração, bons assentos, silêncio, um café, uma lojinha, e uma miríade de outras condições que permitem que, a cada novo encontro com os objetos de arte, o flâneur possa enxergar o que antes era invisível e, ao mesmo tempo, encontrar razões para retornar amanhã. No caso do videogame, este reencontro não precisa esperar até amanhã, quando reabre o museu. Basta “dar um game over e um restart”.

A repetição, a compulsão, uma interação até a exaustão com todos os componentes da cinemática do videogame; os cenários, os personagens e a trilha sonora; um conhecimento detalhado de cada atributo do ser-monstro-avatar-avião que você controla. Este é o horizonte da experiência estética do videogame e, para sua realização, a função game over/restart é essencial.

No processo, como em qualquer jogo, constrói-se o horizonte de uma vitória que é cada vez mais passível de ser conquistada, na medida em que a narrativa ou atividade do jogo fica cada vez mais familiar ao jogador. Dominar o horizonte estético do videogame é, portanto, essencial para extrair o prazer lúdico de jogar. E é a possibilidade concreta de ganhar, e não a intensidade do desejo de vitória, que se configura como condição necessária à construção daquilo que conhecemos como o “vício” de jogar videogames.

O que o desenvolvedor de videogames almeja, portanto, é encontrar maneiras de converter o gamer em um jogador infiel; alguém que não hesita em começar uma nova partida, desde que sempre no mesmo jogo (afinal, o objetivo é a fidelidade do consumidor). Para tanto, ainda que o videogame possa ser completamente alheio à lógica do ganhar ou perder, é preciso que haja algo como “jogar bonito” para descrevermos a experiência estética que ele possibilita; algo similar ao que testemunhamos no futebol, por exemplo. Há inclusive videogames em que sequer a lógica do competir tem importância; em que a lógica é essencialmente cooperativa ou contemplativa. Em todos, entretanto, a gramática do game over/restart é insuperável. Imerso em sua atividade lúdica, sem noção do tempo que passa e alheio aos passageiros do espaço que ocupa, o gamer subitamente sente-se desagradado com a partida que joga. Game over. Restart.

O tempo do presente ampliado

Gumbrecht diz que vivemos hoje um presente ampliado, que o futuro já não é um lugar certo para se ir e que o passado perdeu sua função pedagógica. Em sua amplitude, creio que o videogame revela esta nova temporalidade e a técnica que ela privilegia. Quando o desenvolvedor de videogames consegue emaranhar o jogador na trama do game over/restart, a experiência estética ganha expressão no próprio ato de jogar. E o prazer, a beleza, o bom gosto, em suma, a experiência estética que o jogador irá vivenciar depende essencialmente de um videogame que é simplesmente “bom de jogar”.

JOSÉ EISENBERG é professor de Filosofia da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ)

FONTE: O GLOBO

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